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sexta-feira, 30 de abril de 2010

Sexo in the Sítio


Filme vencedor do FERP - Festival Estercultura de Rio Preto.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

A Minha Cidade

Aqui, na minha cidade, estou tentando construir um texto para um site. Uma amiga me pediu para não ser tão agressivo. Nem morder e depois assoprar eu posso. Posso ou não posso? Para escrever peguei um daqueles rádios toca-fitas em casa, bati a poeira e inseri a fita de um amigo que conheci no 100%, um desses postos de álcool (já é o nome adequado sem precisar de trocadilho) onde encontram-se os que procuram quem fazer, porque se procurassem o que fazer, não estariam ali. E eles fazem, fazem e mais fazem, foi assim que me fizeram.

A fita até então está interessante, se eu fosse um produtor uma música do lado A já teria futuro. Aliás, o teor de autenticidade da fita está diferente de muita coisa feita na minha cidade. Minha cidade faz música baseada nos preceitos do adultério e na conivência artística do corno e seus semelhantes com a criatividade e insatisfação de suas companheiras. Eles parecem adorar isso e comemoram nababescamente essa condição em comum de gente simples e alegre. Essas pessoas aprovam todas as músicas que couberem em qualquer lado da fita, ainda que tenha tantos lados quanto os alfabetos japoneses, alfabetos gregos e até mesmo os analfabetos forneçam símbolos o suficiente para nomeá-los. Posso dizer que hoje as coisas mudaram, cabem mais músicas no formato MP3 em um CD e por incrível que pareça cabem mais pessoas na minha cidade para produzi-las, enquanto a lenda diz que o ser humano evolui.

Mas na minha cidade é “tudo nóis na fita”, “ta ruim mais tá bão.”

“TÁ BÃO???”
Mudei o lado da fita, começou bem. Modéstia a parte, já passei por poucas e boas na minha cidade pra perder tempo em conhecer pessoas de percepção “adulterada” que capota mais não breca. Na minha cidade se fosse tudo nóis na fita tava bão. Tava bão???

Nem tanto.

Apesar de me enquadrar no ramo dos anormais, eu não me sentiria bem nessa turma dos “nóis capota mais nóis não breca” mesmo estando ciente de que a inteligência hoje é encarada como uma doença. Dalton Trevisan conseguiu escapar do ostracismo existencial (tem gente que consegue não existir) se conformando com a condição de imutabilidade da incompetência. Não digo da burrice porque até os burros são criativos, sempre temos uma burrada pra contar. Nos EUA, por exemplo, o burro é tido como um animal inteligente, ele tem personalidade forte. Por isso que o brasileiro taxou o animal como desprovido de atitude, porque aqui a atitude incomoda. Aqui, enquanto um burro fala o outro abaixa a orelha. Mas ninguém ainda entendeu esse aforismo. Na minha cidade é assim. Capisci? Tem estrume entrando (ou saindo) pelos ouvidos.

Voltando a Trevisan, cronista, como diz um artigo: “O bom comportamento acaba sendo punido. Quem se dá bem é quem não está nem aí, não planta nada, mas está sempre colhendo o seu. Venha de onde vier.”; “A vida só se justifica pela alienação e seus subprodutos. Sem esses ela é esquálida como uma caveira no deserto.” E ainda: “... diante da escolha, todos preferem ser alienados vivos, por pior e mais desastrada que seja a existência. O melhor é continuar no jogo, mesmo em desvantagem. Afinal, as cartas viram”. O título do artigo? “Vivos e Otários”. Parece a minha cidade.

Os cidadãos da minha cidade se comunicam pela bunda. Falam da bunda, falam pela bunda, julgam pela bunda, dão a bunda, até nascem pela bunda. De vez em quando eles vestem a bunda. Apertam tanto as calças que o sangue acaba subindo para o cérebro, fazendo com que este funcione. É aí que conseguem se comunicar. “Nóis capota mais não breca”, “tá ruim mais tá bão”, “é nóis na fita”, “nóis trupica mais não cai”.

A Natty, minha amiga que me pediu para ir direto ao assunto, que me perdôe.

Não estou sendo agressivo, pelo contrário, escrevo o que gostaria de ler nessa cidade. Pra não ter vergonha de dizer que é minha cidade. Na verdade não há vergonha em ser caipira desde que você não seja nada além disso. E minha cidade não está sendo algo além disso, embora seus moradores pensem ter o rei na barriga. Portanto não tenha vergonha de ser Rio Pretense. Desde que viva na roça.

Agressividade é essa impotência das pessoas diante da injustiça social. Tendo um ponto de vista altruísta os desafortunados em questão agridem a si mesmos, mas é aí que está o engano. São mulheres de malandro. Gostam de apanhar. Então, tomo a postura de afirmar que a agressividade está prejudicando a mim nesse momento. Se as ovelhas precisam do cajado, que façam bom proveito. Não sou ovelha.

O sujeito que está por cima da carne seca não é de fato mais inteligente. Os homens das cavernas, humanos “atuais” e os humanos evoluídos estão vivendo juntos, em uma maneira peculiar de explicar o desentendimento humano. Um precisa do outro, estando por baixo ou por cima. Mas podem pensar que sou louco (aliás, penso que vocês também são), os homens das cavernas, humanos “atuais” e humanos evoluídos estão vivendo juntos.

Três maneiras de se entender homens das cavernas: primeiro assistindo Linha Direta (veja as atrocidades). Segundo, tendo um caso de incompatibilidade (insucesso social) grave na sua vida ou na de alguém que você ame. E terceiro, uma atitude de ímpeto que em sucessivas vezes arrastam sua vida para a ruína, mesmo que seja de agredir a outras pessoas ou de agredir a si mesmo com o ócio e a passividade se conformando com o sucesso alheio.
Há ainda o quarto fator e mais óbvio: não saber o que fazer.

Mesmo nessa indecisão, sem saber o que fazer, sabemos que TEM o que ser feito. Se o político sabe o que fazer e faz o oposto, exatamente o OPOSTO do que um líder deveria fazer, é sinal verdadeiro de que nós percebemos o que acontece. Se eu fosse o único ser vivo além dos políticos a sentir na pele a injustiça toda, enquanto você e todos os demais desafortunados fossem robôs, eu me conformaria com essa condição solitária de miséria. Mas não é o caso, você me dirá que não é um robô. Já é motivo o suficiente para entender a questão do certo e errado. Alguém acha, partindo do pressuposto de que todos que o rodeiam não são robôs e têm necessidade de viver decentemente, que esses políticos que aparentam ser inteligentes são de fato inteligentes? Eles não sabem que existe vida além deles? Se eu não entender isso e nem você, então deveremos nos curvar à inteligência dos homens das cavernas.

RIO PRETO, UMA SÉRIA ILUSÃO
Comecem a prestar atenção nos artistas consagrados no Brasil. Há uma fórmula, sustentada pelos veículos de massa como a televisão aos domingos. Vai lá um artista e expõe um sucesso. Dizem que é um sucesso. Acreditamos. Ouvimos antes muita música boa, achamos que aquilo é passageiro, mas dizem que aquilo é sucesso. Fazer o que, acreditamos! Passa um tempo, uma, duas semanas. Aquilo está no programa de novo. Penso ingênuo: “mas de novo? Nem é tão bom assim!”... mas está lá de novo. E aquilo se alastra e vira uma oração, porque tem música que gruda mais que oração. Por insistência, qualquer ruído fica inesquecível, tome como exemplo o peido.
O impressionante é quando você enfim se convence que aquilo é totalmente comercial e sem conteúdo cultural, mas não pára de tocar. Com o tempo, assim como todas as bandas produtoras de música descartável, esta enfim é esquecida pelas emissoras de TV e rádio.

A FÓRMULA DO SUCESSO
Depois de um certo tempo, o artista aparece de novo com um novo hit engatilhado. Surge a todo vapor, em vários horários da emissora com uma música que parece coisa feita às pressas pra festa de criança (estas que não precisam ainda ser tão exigentes). E o povo aceita. Aquilo toca e tem a mesma aceitação do sucesso antigo, mas por ser tão pior, acaba valorizando o trabalho anterior do artista. Aquilo toca um domingo, toca dois, três... e eles vão intercalando com outras bandas que em gêneros musicais diferentes envolvem a platéia nesse mesmo parque jurássico circense.
Depois de um tempo o programa chama o artista de novo. O tempo passa e o cara vai lá de novo. Com muita paciência vamos nós analisando a estratégia do programa e depois de um tempo o cara vai lá de novo. O som não melhora, sempre uma surpresa pior... depois de mais um tempo o cara é chamado pra uma homenagem e ele toca os “maiores sucessos” da carreira recebendo um disco de ouro e tocando o mais novo CD com alguns “sucessos” até então desconhecidos. Depois de um tempo o cara vai lá de novo. Nesse mesmo ciclo, esperando alguma melhora a gente percebe que o programa continua e na atração o cara vai lá de novo. Se você já está de saco cheio de ver nesse texto “o cara vai lá de novo”, imagina ouvir a música dele então! E o cara vai lá de novo!

SE O RIO É PRETO, IMAGINA O FUNDO
Tem gente que consegue ver o que acontece, que nem eu. O meu ponto de vista não dá nem chance pra modéstia. Fique com ela quem tiver estômago forte aqui na minha cidade...
Comecem a prestar atenção nos músicos em comerciais e programas da TV brasileira... os fãs e as pessoas no geral se deslumbram com o cifrão estampado nas nobres testas dos ilustres os quais apresentam a feição do deboche frente ao ponto de interrogação que o fã tem carimbado na cara! O sorriso deles é algo explícito espelhando a ingenuidade dos incautos na sua pobre realidade, só sendo cego pra não ver! Aliás, na cama, a tendência do homem brasileiro simples é de agradecer em oração ao artista quando proporciona à mulher uma ilusão “Dele”(o artista) quando fecha os olhos.
A mulher e os filhos apanham depois do marido inconformado como nenhum ser humano hodierno deveria ser preparado para suportar, a não ser que vivesse na era das cavernas. Por que será? O cara está inteligente?

O artista que sabe que essas coisas acontecem nos lares, depois de acumular tamanha fortuna, continua participando dessas mediocridades culturais por quê?

Agora imagine a situação: uma reunião de negócios onde um artista, depois de ter sua criatividade iluminada, expõe ali sua brilhante criação...



“HOJE É FESTA, LÁ NO MEU APÊ”
Se fosse eu, pra começar, estaria certo de que qualquer um daria risada e me chamaria de palhaço por apresentar um negócio desses. Mas estamos falando de uma reunião séria, um conchavo de gente que já sabe o que faz e com que povo está lidando, as engrenagens estão todas funcionando para que a máquina conclua a obra e o trabalho se concretize. A música será incessantemente tocada sem ter no mínimo um mérito cultural construtivo para os seres pensantes assimilarem. Pensar pra eles é tudo o que não interessa no seu público alvo.
“Vamos trabalhar sério nisso que tem saída”, “Nossa, isso é genial, vai ser um sucesso! Vamos faturar!”,“Você tem lugar garantido na nossa gravadora, tem noção do quanto sua conta bancária vai crescer, sem falar na sua popularidade...” e assim vai de vento em popa.


FICÇÃO CIENTÍFICA?
Mas tenho como realidade o dia no qual reuniremos essas obras em uma espécie de bienal da imagem e do som, intitulada “A Arte do Absurdo”. Acredito, só pode ser arte isso, tanta criatividade e acima de tudo coragem desses desbravadores para expor o seu povo a tão ridículo grau de detrimento moral e social perante sua própria nação e também diante do mundo.

A drástica regressão cultural será tida como pornografia e servirá para os rebeldes da era em questão ou até mesmo como refúgio da sobrecarga de conhecimento de um cérebro que o ser humano atual afirma que não é usado em sua totalidade. Isso parece ficção científica pra você? Então nossa situação prova que com certeza o ser humano se tornou patético, banal, e a vergonha pungente é acolhida e adornada. Essa ficção científica seria a visão da mais pura naturalidade evolutiva se nós, de fato, raciocinássemos. Anormal seria a quantidade de cérebros dormentes em corpos vegetativos sobrevivendo em uma nação tão extensa como a nossa, terra esta dos impostos mais caros do mundo e o salário mínimo mais injusto. Nossa, isso sim é coisa de filme. A título de curiosidade, o salário mínimo justo para o brasileiro seria de 1.500 reais (achei essa constatação em um site de cultura inútil).

A minha cidade é um retrato, em grande angular, de um país de gente simples e feliz. Gente que essa cultura amacia e deixa simples de ser manipulada, gente que se contenta em gozar com o pau dos outros. O brasileiro ainda, em orações, agradece pelo fato das coisas não piorarem. Perceba que os patrões, por exemplo, abusam, se lambuzam e em seguida deixam no ar o arquétipo da sarjeta temperando a boca do funcionário, afinal, se do pó vieste ao pó voltarás.

A FÉ NÃO COSTUMA FAIÁ
É até compreensível não termos tanto, só o suficiente. Mas precisa estar desse jeito? Isso está certo? Precisa estar assim? Chegar a esse ponto, ainda PIORANDO CADA VEZ MAIS?
Nessa visão derivada da filosofia grega de inferno e paraíso tão difundida pelo Ocidente o pragmatismo das doutrinas chegou a um impasse: o justo está no inferno, mas tem uma visão do paraíso sendo habitado pelos espertos. Os malandros em questão conseguiram, por meio de crenças estipuladas para a gente simples, vender um paraíso. Sim, ele é acessível, mas para isso você terá que negar o mundo material (deixa que os malandrinhos cuidam) para viver no Éden depois, quando morrer. Vejam que até a morte conseguiram vender, olha que beleza. Ah, o preço? A vida. Escolha sua posição: você vive para morrer ou morre para viver?

PROJETO OFICINA DO SOM – RÁDIO SONICA
A princípio tivemos a idéia da rádio. Meu irmão e eu. A ficha caiu no momento em que sentimos que a música (a boa música) nunca iria deixar de fazer parte de nossas vidas sendo a recíproca verdadeira. Fez sentido, visto que depois de fazermos escolhas e planos vida afora, nunca deixamos de estudar sobre música e atualizarmos nosso conhecimento a respeito, aprofundando no bom e velho rock. Fizemos um piloto, uma simulação de uma rádio rock, analisando nessas experimentações diversas rádios e programações televisivas, incluindo seus pontos fracos e fortes.

Pelo fato de estarmos livres de compromissos lucrativos nesse projeto experimental, tivemos a liberdade de elaborar uma programação inteiramente do nosso gosto. Encontramos nesse percurso muitos amigos que se juntaram a nós, participaram e acharam que a programação ficou dez, apesar de amadora ainda. Gravamos as programações em CDs e, depois de elaborar um pouquinho melhor as brincadeiras e edições ao longo da programação, compilamos o trabalho no quarto CD da Rádio.

Depois de anunciar o projeto na comunidade da Rádio SONICA RIO PRETO no Orkut, fizemos cópias (o número foi limitado devido à falta de patrocínio) e distribuímos para amigos e membros da comunidade que se manifestaram pedindo o CD. Descobrimos que apesar de ser uma cidade sufocada pela “estercultura”, ou seja, a cultura rural, reside nela muita gente que sente a necessidade de ouvir uma rádio com algum conteúdo bem selecionado de música e uma programação que não seja exclusivamente voltada para retardados. O impressionante é que descobrimos que mesmo quem não gosta de rock tem reclamado das rádios da nossa cidade interiorana. Basta ter ouvido pra perceber que de fato as programações estão bem fraquinhas, superficiais e de entretenimento não tem nada de especial.

Essa foi a pedrinha que jogamos na margem, e as ondas já tomaram toda a lagoa.

A OFICINA DO SOM é um projeto que já conta com um grupo um pouco maior, de amigos que sentem que a sociedade tem virado às costas no que diz respeito à integração da boa vontade do cidadão, que transborda de idéias e talentos que não se enquadra em um povo que desaprendeu a apreciar a boa cultura e um trabalho sincero de respeito e bom gosto pela arte. Um povo que passou a viver como formigas, esmagadas pelo desprezo dos seus talentos.
Nosso projeto está aberto para pessoas que estiverem a fim de participar. Estamos procurando gente com idéias para fundarmos um grupo forte de apoio à arte em geral. Além da música, temos projetos de jogos culturais em andamento para inserir algum ensinamento nas escolas de maneira que os estudantes assimilem de fato muito da nossa cultura e também da cultura mundial. Como se percebe, temos uma ampla visão de que se estimularmos os verdadeiros valores humanos, estaremos pondo ordem na nossa casa onde habitarão nossos entes queridos. Vamos eliminar esse teor de conto de fadas que, hoje em dia, paira no ar quando falamos de um futuro melhor a que todos temos direito.– Denis P. B. Tonon, 14/06/2006

domingo, 25 de abril de 2010

Parte Dois: A Arma - Denis Peter Barreto Tonon

- Nessa distância já fiz passarinho beijar bala em vez de flor!
- Acertar um beija-flor daqui? Não acerta nem urubu, Dinho, conta outra vai! Cheio de história, heim! – Túlio era daqueles que não fazia muita coisa e custava a admitir que os outros fizessem também – Vai lá, pega a espingarda do teu pai, tô sabendo que eles estão no clube, agora!
- Não sei...
- Ah, tá vendo? Todo mundo sabe que você é só papo, véi!
- Que todo mundo, Tuca, você que é um bunda! Fica aí que eu já venho, se acertar essa rolinha na primeira, você vai ter que arrancar a cabeça dela na boca e dar uma mastigada, topa?
- Então se você errar vai ter que arrumar a tua prima pra mim.
- Pô, a Leninha não, meu, sem zoeira, cês sabem né, eu tô cuidando! – Edimas que estava imparcial e introspectivo na conversa até então, se exacerbava pela ameaça ao seu reino encantado.
- Ô moleque, ce nem pelo no saco tem ainda, fica quieto! A menina tem o dobro do teu tamanho, ela que tá te cuidando! - Por um breve instante os dois até esquecem do desafio e se entregam às fartas e pilhéricas gargalhadas às custas da ingenuidade do garoto.
De fato Dinho havia matado um beija-flor, mas por acaso. Errou uma pomba e acertou o pássaro que estava por detrás de uma folha, simplesmente o lugar e hora errados para ali descansar. Deixou a honestidade, que nessa fase só serve para um irmão entregar o outro, e alimentou o seu ego juvenil: tinha uma boa pontaria, acertou um beija-flor!
Mas a sua preocupação não era a pontaria. A caminho de casa, no mesmo quarteirão, se perguntava ainda se deveria mesmo deixar que o orgulho vencesse a prudência. Será que os fins justificariam os meios? Polícia praticamente não era vista por ali, chegou a ser assaltado em plena avenida Murchid, situada a dois quarteirões para baixo, ao meio dia de uma terça-feira, e não foi caso isolado. Domingo naquele horário, os vizinhos estavam assando uma carne ou já fazendo a sesta, as ruas estavam desertas. Só passarinhos, algum escanifrado animal de rua e três moleques procurando sarna pra coçar.
- Cara! Deixa ver isso! Tô pedindo uma dessas pro meu pai faz tempo! – Era sempre a mesma coisa, o seu Vanor: você não tem juízo pra isso, menino, imagina!
- Não, eu vou atirar logo, que tô com cagaço de isso sujar pra mim. Vai ter que mastigar, tá sabendo, né?
A arma em riste, o pássaro se engrenou por meio de umas folhagens, mas a maior parte ainda estava à vista. Era só puxar o gatilho.
- Vixxxxi maaano!
Aquilo não era um aviso, já sim um lamento. Por uma fração se segundo antes de virar o rosto para a única esquina onde não se poderia disfarçar e esconder um flagrante, Dinho mentalizou, até premeditou a última coisa que desejaria ver naquele momento: uma viatura dobrando a esquina. Justo aquela esquina, meu Deus, eles não viram, não é verdade, não pode ser.
- Guspeba! - De costas pra rua, fingiu chamar um amigo na casa em frente, escondendo a arma com o corpo franzino – Guspeeeba!
- Ufa, que susto, essa foi por pouco – suspirou - eles passaram reto...
- O rapaz! O que você ta segurando, aí?
O pior momento da vida de Dinho.
- Uma espingarda, tio, vim mostrar pra um amigo, mas já vou levar de volta!
Quem falou foi o motorista, um homem de seus cinqüenta anos, obeso. Nem descera, mas o outro já estava ao lado, mais jovem, estatura média. Para Dinho era pior essa imagem do que a de qualquer carrasco de filme de terror ou assalto que já sofreu. Era a realidade, era a vítima, e era o culpado.
- Bota no chão! – disse em tom autoritário.
- Menino, não brinca com isso, é perigoso! De pressão?
- Pressão? – examinando – Isso é uma vinte e dois, com uma bala na agulha!
- Uuuuh rapaz! Ta brincando! – desceu do carro – menino, quem te deu isso?
- É do meu pai.
- Pra onde você estava apontando?
- Ia matar aquela rolinha lá... – se contradisse, e pra piorar já nem estava mais na árvore, a vítima que se tornara álibi criou asas e voou – por favor, tio, não leva não, é do meu pai, ele toma o maior cuidado com ela.
- Levar a arma? Eu vou levar é você, junto. Entra no carro.
O menino fazia esforço pra não perceber a gravidade do assunto e manter a calma, afinal, pensava que poderia ser preso dali por diante, apanhar como nunca em casa ou causar um infarto no pai, no máximo isso. Túlio e Edimas estavam apreensivos com um misto de dó e ansiedade para contar ao bairro a estrepada que o amigo havia se metido.
- Rapaz, qual é o seu nome?
- Dinho. Geraldo.
- Então vamos, entra no carro, Geraldo. Como se chama o grandão, ali?
- Túlio.
- Você vem junto como testemunha.
Impressionava, inédito para Dinho como um cara de quase dezoito anos nas costas podia chorar daquele jeito, três anos mais velho, foi uma surpresa. Nem o réu na situação que estava chegou a esse ponto.
- Cara, se meu pai me ver aqui, eu rodo feio! – tenha dó, era só testemunha! Se abaixava no assento do carro como se cometesse um crime nacional. Roubava a cena do protagonista!
Sabia que ao menos seria mais um ponto no seu curriculum da vida, uma bela história para ser contada e saboreada no futuro. Como alguma piada feita pelos policiais na delegacia: - Por que você não mata uma rolinha com essa? – mostrando uma metralhadora. Teria um preço a ser cobrado em casa, ficava imaginando se ficaria com hematomas ou vergões, dessa vez. Qual roupa escolher, a fim de diminuir o contato das esfoladas? Talvez umas toalhas por baixo da roupa. Estava decidido qual seria a proteção, dando certo serviria para as próximas.
Algumas vezes no futebol são os gols que não foram marcados os mais intrigantes, no caso foi a surra que Dinho deixara de levar, essa ele nunca esqueceu, diferente de outras tantas. Sentiu na ocasião um certo desapontamento, jamais saberia da eficiência da armadura que forjou, e teve somente uma vaga idéia do que passava pela cabeça do pai. Espanto, surpresa, raiva, ou talvez pena e graça pela situação humilhante do filho diante do castigo que esperava? E não era então digna de umas boas correadas tal artimanha? Passava longe das peripécias contadas pelo velho, onde era reconhecida pelas obstinadas surras de fio de aço arremetidas pelo pai, ou as súplicas desesperadas por piedade debaixo das cabadas de vassoura aplicadas pela mãe?
Uma era a certeza, sabendo da intensidade do acontecido, dona Alzira acalmara seu Tenório, seria perigoso, comparando em proporções às outras surras por motivos bem menores que esse. Os sinais, entretanto, que se poupou a Dinho não o foi com a arma, devolvida meses depois com algumas marcas de ferrugem.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Cérebro Humano Moderno

O Presente

- Denis Peter Barreto Tonon -


Se há alguma vantagem na memória fraca, essa é a de soltar ao vento os detalhes inúteis da vida, conservando os fundamentais...
Ou será o contrário? Enfim, não está à competência humana lembrar de se esquecer ou não de algo por simples conveniência, o subconsciente é um barco que não se importa com a correnteza. Foi assim que, sem nenhum convite ou aviso, esse barquinho aparece da tenra idade...



O Presente de Aniversário

O templo, o ateneu, a montanha. Outrora um quarto qualquer de moleque, dormitório, e às vezes por via dos fatos masmorra, onde mais uma vez Giseldo, vulgo Zoreia, pagava por alguma imprudência juvenil. Já não se via como um condenado ali, a não ser pela sua sede de vingança, precisava de uma idéia de gênio, mestre. Um plano exímio, ao ponto da gentileza que lhe foi prestada pelo irmão.
Geraldo, com seus quinze verões, três a mais que sua vítima conterrânea de útero. Aconteceu que no dia das crianças foram distribuídos no colégio de Zoreia pintos, do tipo galináceos. Esse foi o protagonista de uma história curiosa, o ingrediente principal para uma experiência do capetinha, que espetou Dinho (de Geraldinho) pra realizá-la.
Laboratório: banheiro. Recipiente: vaso. Conclusão, botão de descarga e o efeito um galeto refogado com um mancebo a escancarar tamanho berreiro de dar dó. Que destino teve o pobre pinto.
Atraída pelo estardalhaço Dona Alzira, a progenitora, se depara com a cena que a não ser pelo agente errado, poderia já ser um flagrante. Mesmo assim o foi. Dinho se escafedera e com o estardalhaço armado se aproveitou da situação lastimável do irmão se pondo como vítima de tal atentado à moral e bons costumes praticado pelo infeliz.
O destino injusto reservara para Giseldo generosas palmadas e o que outrora seria um divertido fim de semana se tornara incontáveis horas de martírio. Restara um quarto, quatro paredes e uma porta à sete chaves. E foi aí que se originou, se não o melhor, pelo menos um dos mais criativos presentes de aniversário que alguém poderia pensar em dar. Já diziam, as melhores invenções surgiram das necessidades, e diga-se de passagem, essa não foi diferente.
Justamente naquele dia todo tipo de alimento laxativo resolve vir ao encontro do moleque, se lambuzara de mamão pela manhã, uma bela feijoada pelo almoço e naquele momento a porta que os levaria para a liberdade estava se abrindo, mas a que o levaria aos banheiros estava fechada. Passava por um verdadeiro “purgatório”, ali.
“Das duas, uma: ou não tinha ninguém em casa bem naquela hora, ou esse haveria de ser o castigo mais bem aplicado da minha vida.” – era assim que Giseldo contava, anos depois.
Já não tendo mais como conter as forças da natureza, passou a mão na primeira caixa de sapatos que encontrou e disparou o torpedo. Foi quase heróica a agilidade e rapidez que teve para conseguir abaixar as calças entre uma coisa e outra, naquele momento as suas vontades já não lhe pertenciam mais.
Consumado o ato, depois de se limpar com um dos bonés preferidos do irmão, era hora de pensar no fim que ele daria à criança, por sinal bem saudável. Se fosse um pai se sentiria orgulhoso. Não adiantava somente fechar a caixa, o ar estava quente e o clima abafado, logo o aroma se alastraria pelo aposento.
Pensou em jogar pela janela, mas ficava sobre o quintal da dona Judite, alvo de vários outros projéteis menos danosos que esse, mas responsáveis pela identificação do terrorista. Pensou em embrulhar, mas as folhas de caderno não davam nem meia volta sobre a caixa, quando se lembrou de uns papéis de presente que dona Alzira guardava no armário.
Estava resolvido, aquele embrulho isolaria por algum tempo o mau odor. Era hilário, aquela imagem que tantas vezes o fizera perder dias de sono na véspera de aniversários, natais, feriados, o símbolo mais prazeroso em qualquer infância, ocultava uma surpresa tão inusitada e desagradável. Que brincadeira de extremo mau gosto, presentear alguém daquela maneira, quem seria o merecedor de tamanha injúria, e como reagiria?
A resposta estava à poucos metros, e a poucas horas. Dinho faria aniversário na segunda, dia seguinte. Estava planejado. A vingança viria. Nunca na existência do homem desde a invenção do calendário uma criança esperou tanto para um fim de semana acabar.
Mas era de extrema importância que ninguém descobrisse. Bom, o pior lugar era o quarto, ambos dividiam o mesmo e Geraldo principalmente deveria ficar o mais longe possível da sua surpresa, até o momento perfeito. Depois de eliminar todos os cômodos da casa, a conclusão é que o quarto dos pais seria o melhor lugar, o menos movimentado. Debaixo da cama, ninguém mexeria, pelo menos não naquela noite. Logo pela manhã anteciparia a faxineira e tomaria o embrulho de volta, antes da aula. Seu quarto vazio pela manhã, os dois estudavam cedo. Ali ficaria em segurança até o grande momento, a vingança tão desejada, a desforra, o descarrego, o despique, a justiça pelas próprias mãos.
Terminada a sua pena. O metal da chave na fechadura anunciara. Dona Alzira que esperava o moleque emburrado encontrou no seu lugar um menino agitado e ansioso, querendo disfarçar com uma estranha tranqüilidade que transbordava, na qual todo pai se preocupa como que antecipando a tempestade precedida pela calmaria de uma brisa inofensiva.
Tudo correu de acordo com o planejado, até agora o plano correra impecável. A caixa depositada no devido local, longe de qualquer suspeita, estava praticamente confirmado o sucesso da operação, por hora bastava dormir e deixar que o tempo levasse até o último passo.
Todos então se recolheram, chegada a hora do devido descanso, uma semana inteira pela frente até o próximo fim de semana, aquela seria uma boa noite de sono. Não para dona Alzira e seu Tenório.

- Tenô!
- Hum?
- Ce ta sentindo?
- Hum?!
- Esse cheiro! Acorda!
- Que horas são?
- Vinte pras quatro. Nossa, que carniça!
- Deve ser o esgoto da rua. Fecha a janela.
Dez minutos depois...
- Tenô!
- Ooô Alzira, ce não dormiu, ainda?
- Tenô, piorou, essa catinga é aqui dentro!
- Deve vir do banheiro.
- Acende a luz.
Clic!
- Nossa, gente, o que é isso!!!? Deve ter um bicho morto nesse quarto!
- Parece que ta vindo de baixo da cama. Hoje não se dorme mais aqui com esse fedor.
- Tem um embrulho aqui, acho que é isso.
- Me deixa ver – Seu Tenório com a respiração presa, os braços esticados ao máximo abre com a ponta dos dedos mantendo o menor contato possível com o embrulho misterioso.
- Geeente, que horror! Minha nossa senhora, o que é isso!!!??? – Dona Alzira que apesar de não ser a responsável pelo ato de violar o pacote, estava mais próxima e foi a primeira a se deparar com o suposto “bicho”. O bolo havia cozinhado com o calor, pois era verão e o cheiro que se acumulara na caixa era no mínimo atordoante, chegando a ser nocivo para quem sofre de pressão baixa ou tem estômago fraco, ou os dois, como era o caso da Dona Alzira.

Giseldo jamais contou a verdade, pois preferiu apanhar junto ao irmão que apanhar sozinho novamente, o que resultou em um belo presente de aniversário com gostinho de indignação, por ter levado umas cintadas de graça antes mesmo dos parabéns.
Aquele presente pode não ter fedido, mas que ardeu muito, isso ardeu.

Oficina do Som Rio Preto

Oficina do Som Rio Preto