- Nessa distância já fiz passarinho beijar bala em vez de flor!
- Acertar um beija-flor daqui? Não acerta nem urubu, Dinho, conta outra vai! Cheio de história, heim! – Túlio era daqueles que não fazia muita coisa e custava a admitir que os outros fizessem também – Vai lá, pega a espingarda do teu pai, tô sabendo que eles estão no clube, agora!
- Não sei...
- Ah, tá vendo? Todo mundo sabe que você é só papo, véi!
- Que todo mundo, Tuca, você que é um bunda! Fica aí que eu já venho, se acertar essa rolinha na primeira, você vai ter que arrancar a cabeça dela na boca e dar uma mastigada, topa?
- Então se você errar vai ter que arrumar a tua prima pra mim.
- Pô, a Leninha não, meu, sem zoeira, cês sabem né, eu tô cuidando! – Edimas que estava imparcial e introspectivo na conversa até então, se exacerbava pela ameaça ao seu reino encantado.
- Ô moleque, ce nem pelo no saco tem ainda, fica quieto! A menina tem o dobro do teu tamanho, ela que tá te cuidando! - Por um breve instante os dois até esquecem do desafio e se entregam às fartas e pilhéricas gargalhadas às custas da ingenuidade do garoto.
De fato Dinho havia matado um beija-flor, mas por acaso. Errou uma pomba e acertou o pássaro que estava por detrás de uma folha, simplesmente o lugar e hora errados para ali descansar. Deixou a honestidade, que nessa fase só serve para um irmão entregar o outro, e alimentou o seu ego juvenil: tinha uma boa pontaria, acertou um beija-flor!
Mas a sua preocupação não era a pontaria. A caminho de casa, no mesmo quarteirão, se perguntava ainda se deveria mesmo deixar que o orgulho vencesse a prudência. Será que os fins justificariam os meios? Polícia praticamente não era vista por ali, chegou a ser assaltado em plena avenida Murchid, situada a dois quarteirões para baixo, ao meio dia de uma terça-feira, e não foi caso isolado. Domingo naquele horário, os vizinhos estavam assando uma carne ou já fazendo a sesta, as ruas estavam desertas. Só passarinhos, algum escanifrado animal de rua e três moleques procurando sarna pra coçar.
- Cara! Deixa ver isso! Tô pedindo uma dessas pro meu pai faz tempo! – Era sempre a mesma coisa, o seu Vanor: você não tem juízo pra isso, menino, imagina!
- Não, eu vou atirar logo, que tô com cagaço de isso sujar pra mim. Vai ter que mastigar, tá sabendo, né?
A arma em riste, o pássaro se engrenou por meio de umas folhagens, mas a maior parte ainda estava à vista. Era só puxar o gatilho.
- Vixxxxi maaano!
Aquilo não era um aviso, já sim um lamento. Por uma fração se segundo antes de virar o rosto para a única esquina onde não se poderia disfarçar e esconder um flagrante, Dinho mentalizou, até premeditou a última coisa que desejaria ver naquele momento: uma viatura dobrando a esquina. Justo aquela esquina, meu Deus, eles não viram, não é verdade, não pode ser.
- Guspeba! - De costas pra rua, fingiu chamar um amigo na casa em frente, escondendo a arma com o corpo franzino – Guspeeeba!
- Ufa, que susto, essa foi por pouco – suspirou - eles passaram reto...
- O rapaz! O que você ta segurando, aí?
O pior momento da vida de Dinho.
- Uma espingarda, tio, vim mostrar pra um amigo, mas já vou levar de volta!
Quem falou foi o motorista, um homem de seus cinqüenta anos, obeso. Nem descera, mas o outro já estava ao lado, mais jovem, estatura média. Para Dinho era pior essa imagem do que a de qualquer carrasco de filme de terror ou assalto que já sofreu. Era a realidade, era a vítima, e era o culpado.
- Bota no chão! – disse em tom autoritário.
- Menino, não brinca com isso, é perigoso! De pressão?
- Pressão? – examinando – Isso é uma vinte e dois, com uma bala na agulha!
- Uuuuh rapaz! Ta brincando! – desceu do carro – menino, quem te deu isso?
- É do meu pai.
- Pra onde você estava apontando?
- Ia matar aquela rolinha lá... – se contradisse, e pra piorar já nem estava mais na árvore, a vítima que se tornara álibi criou asas e voou – por favor, tio, não leva não, é do meu pai, ele toma o maior cuidado com ela.
- Levar a arma? Eu vou levar é você, junto. Entra no carro.
O menino fazia esforço pra não perceber a gravidade do assunto e manter a calma, afinal, pensava que poderia ser preso dali por diante, apanhar como nunca em casa ou causar um infarto no pai, no máximo isso. Túlio e Edimas estavam apreensivos com um misto de dó e ansiedade para contar ao bairro a estrepada que o amigo havia se metido.
- Rapaz, qual é o seu nome?
- Dinho. Geraldo.
- Então vamos, entra no carro, Geraldo. Como se chama o grandão, ali?
- Túlio.
- Você vem junto como testemunha.
Impressionava, inédito para Dinho como um cara de quase dezoito anos nas costas podia chorar daquele jeito, três anos mais velho, foi uma surpresa. Nem o réu na situação que estava chegou a esse ponto.
- Cara, se meu pai me ver aqui, eu rodo feio! – tenha dó, era só testemunha! Se abaixava no assento do carro como se cometesse um crime nacional. Roubava a cena do protagonista!
Sabia que ao menos seria mais um ponto no seu curriculum da vida, uma bela história para ser contada e saboreada no futuro. Como alguma piada feita pelos policiais na delegacia: - Por que você não mata uma rolinha com essa? – mostrando uma metralhadora. Teria um preço a ser cobrado em casa, ficava imaginando se ficaria com hematomas ou vergões, dessa vez. Qual roupa escolher, a fim de diminuir o contato das esfoladas? Talvez umas toalhas por baixo da roupa. Estava decidido qual seria a proteção, dando certo serviria para as próximas.
Algumas vezes no futebol são os gols que não foram marcados os mais intrigantes, no caso foi a surra que Dinho deixara de levar, essa ele nunca esqueceu, diferente de outras tantas. Sentiu na ocasião um certo desapontamento, jamais saberia da eficiência da armadura que forjou, e teve somente uma vaga idéia do que passava pela cabeça do pai. Espanto, surpresa, raiva, ou talvez pena e graça pela situação humilhante do filho diante do castigo que esperava? E não era então digna de umas boas correadas tal artimanha? Passava longe das peripécias contadas pelo velho, onde era reconhecida pelas obstinadas surras de fio de aço arremetidas pelo pai, ou as súplicas desesperadas por piedade debaixo das cabadas de vassoura aplicadas pela mãe?
Uma era a certeza, sabendo da intensidade do acontecido, dona Alzira acalmara seu Tenório, seria perigoso, comparando em proporções às outras surras por motivos bem menores que esse. Os sinais, entretanto, que se poupou a Dinho não o foi com a arma, devolvida meses depois com algumas marcas de ferrugem.
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