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sexta-feira, 23 de abril de 2010

O Presente

- Denis Peter Barreto Tonon -


Se há alguma vantagem na memória fraca, essa é a de soltar ao vento os detalhes inúteis da vida, conservando os fundamentais...
Ou será o contrário? Enfim, não está à competência humana lembrar de se esquecer ou não de algo por simples conveniência, o subconsciente é um barco que não se importa com a correnteza. Foi assim que, sem nenhum convite ou aviso, esse barquinho aparece da tenra idade...



O Presente de Aniversário

O templo, o ateneu, a montanha. Outrora um quarto qualquer de moleque, dormitório, e às vezes por via dos fatos masmorra, onde mais uma vez Giseldo, vulgo Zoreia, pagava por alguma imprudência juvenil. Já não se via como um condenado ali, a não ser pela sua sede de vingança, precisava de uma idéia de gênio, mestre. Um plano exímio, ao ponto da gentileza que lhe foi prestada pelo irmão.
Geraldo, com seus quinze verões, três a mais que sua vítima conterrânea de útero. Aconteceu que no dia das crianças foram distribuídos no colégio de Zoreia pintos, do tipo galináceos. Esse foi o protagonista de uma história curiosa, o ingrediente principal para uma experiência do capetinha, que espetou Dinho (de Geraldinho) pra realizá-la.
Laboratório: banheiro. Recipiente: vaso. Conclusão, botão de descarga e o efeito um galeto refogado com um mancebo a escancarar tamanho berreiro de dar dó. Que destino teve o pobre pinto.
Atraída pelo estardalhaço Dona Alzira, a progenitora, se depara com a cena que a não ser pelo agente errado, poderia já ser um flagrante. Mesmo assim o foi. Dinho se escafedera e com o estardalhaço armado se aproveitou da situação lastimável do irmão se pondo como vítima de tal atentado à moral e bons costumes praticado pelo infeliz.
O destino injusto reservara para Giseldo generosas palmadas e o que outrora seria um divertido fim de semana se tornara incontáveis horas de martírio. Restara um quarto, quatro paredes e uma porta à sete chaves. E foi aí que se originou, se não o melhor, pelo menos um dos mais criativos presentes de aniversário que alguém poderia pensar em dar. Já diziam, as melhores invenções surgiram das necessidades, e diga-se de passagem, essa não foi diferente.
Justamente naquele dia todo tipo de alimento laxativo resolve vir ao encontro do moleque, se lambuzara de mamão pela manhã, uma bela feijoada pelo almoço e naquele momento a porta que os levaria para a liberdade estava se abrindo, mas a que o levaria aos banheiros estava fechada. Passava por um verdadeiro “purgatório”, ali.
“Das duas, uma: ou não tinha ninguém em casa bem naquela hora, ou esse haveria de ser o castigo mais bem aplicado da minha vida.” – era assim que Giseldo contava, anos depois.
Já não tendo mais como conter as forças da natureza, passou a mão na primeira caixa de sapatos que encontrou e disparou o torpedo. Foi quase heróica a agilidade e rapidez que teve para conseguir abaixar as calças entre uma coisa e outra, naquele momento as suas vontades já não lhe pertenciam mais.
Consumado o ato, depois de se limpar com um dos bonés preferidos do irmão, era hora de pensar no fim que ele daria à criança, por sinal bem saudável. Se fosse um pai se sentiria orgulhoso. Não adiantava somente fechar a caixa, o ar estava quente e o clima abafado, logo o aroma se alastraria pelo aposento.
Pensou em jogar pela janela, mas ficava sobre o quintal da dona Judite, alvo de vários outros projéteis menos danosos que esse, mas responsáveis pela identificação do terrorista. Pensou em embrulhar, mas as folhas de caderno não davam nem meia volta sobre a caixa, quando se lembrou de uns papéis de presente que dona Alzira guardava no armário.
Estava resolvido, aquele embrulho isolaria por algum tempo o mau odor. Era hilário, aquela imagem que tantas vezes o fizera perder dias de sono na véspera de aniversários, natais, feriados, o símbolo mais prazeroso em qualquer infância, ocultava uma surpresa tão inusitada e desagradável. Que brincadeira de extremo mau gosto, presentear alguém daquela maneira, quem seria o merecedor de tamanha injúria, e como reagiria?
A resposta estava à poucos metros, e a poucas horas. Dinho faria aniversário na segunda, dia seguinte. Estava planejado. A vingança viria. Nunca na existência do homem desde a invenção do calendário uma criança esperou tanto para um fim de semana acabar.
Mas era de extrema importância que ninguém descobrisse. Bom, o pior lugar era o quarto, ambos dividiam o mesmo e Geraldo principalmente deveria ficar o mais longe possível da sua surpresa, até o momento perfeito. Depois de eliminar todos os cômodos da casa, a conclusão é que o quarto dos pais seria o melhor lugar, o menos movimentado. Debaixo da cama, ninguém mexeria, pelo menos não naquela noite. Logo pela manhã anteciparia a faxineira e tomaria o embrulho de volta, antes da aula. Seu quarto vazio pela manhã, os dois estudavam cedo. Ali ficaria em segurança até o grande momento, a vingança tão desejada, a desforra, o descarrego, o despique, a justiça pelas próprias mãos.
Terminada a sua pena. O metal da chave na fechadura anunciara. Dona Alzira que esperava o moleque emburrado encontrou no seu lugar um menino agitado e ansioso, querendo disfarçar com uma estranha tranqüilidade que transbordava, na qual todo pai se preocupa como que antecipando a tempestade precedida pela calmaria de uma brisa inofensiva.
Tudo correu de acordo com o planejado, até agora o plano correra impecável. A caixa depositada no devido local, longe de qualquer suspeita, estava praticamente confirmado o sucesso da operação, por hora bastava dormir e deixar que o tempo levasse até o último passo.
Todos então se recolheram, chegada a hora do devido descanso, uma semana inteira pela frente até o próximo fim de semana, aquela seria uma boa noite de sono. Não para dona Alzira e seu Tenório.

- Tenô!
- Hum?
- Ce ta sentindo?
- Hum?!
- Esse cheiro! Acorda!
- Que horas são?
- Vinte pras quatro. Nossa, que carniça!
- Deve ser o esgoto da rua. Fecha a janela.
Dez minutos depois...
- Tenô!
- Ooô Alzira, ce não dormiu, ainda?
- Tenô, piorou, essa catinga é aqui dentro!
- Deve vir do banheiro.
- Acende a luz.
Clic!
- Nossa, gente, o que é isso!!!? Deve ter um bicho morto nesse quarto!
- Parece que ta vindo de baixo da cama. Hoje não se dorme mais aqui com esse fedor.
- Tem um embrulho aqui, acho que é isso.
- Me deixa ver – Seu Tenório com a respiração presa, os braços esticados ao máximo abre com a ponta dos dedos mantendo o menor contato possível com o embrulho misterioso.
- Geeente, que horror! Minha nossa senhora, o que é isso!!!??? – Dona Alzira que apesar de não ser a responsável pelo ato de violar o pacote, estava mais próxima e foi a primeira a se deparar com o suposto “bicho”. O bolo havia cozinhado com o calor, pois era verão e o cheiro que se acumulara na caixa era no mínimo atordoante, chegando a ser nocivo para quem sofre de pressão baixa ou tem estômago fraco, ou os dois, como era o caso da Dona Alzira.

Giseldo jamais contou a verdade, pois preferiu apanhar junto ao irmão que apanhar sozinho novamente, o que resultou em um belo presente de aniversário com gostinho de indignação, por ter levado umas cintadas de graça antes mesmo dos parabéns.
Aquele presente pode não ter fedido, mas que ardeu muito, isso ardeu.

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